Vladimiro Miranda aplica inteligência computacional aos sistemas de energia, José Carlos Príncipe investiga o processamento de sinais do cérebro humano. O primeiro é professor no INESC TEC, no Porto, o segundo na Universidade da Florida, nos EUA.
Vladimiro Miranda cruzou os modelos da Engenharia Biomédica de José Carlos Príncipe com a previsão do vento e o resultado foi premiado. Recebeu ontem nos Estados Unidos o prémio de excelência em energia renovável, atribuído pelo Instituto de Engenheiros Eléctricos e Electrónicos (IEEE), a maior associação profissional do mundo destes engenheiros. José Carlos Príncipe foi o primeiro português a receber um galardão do IEEE, em 2007 e 2011, por contributos para a Engenharia Biomédica.
Um encontro no Porto com o PÚBLICO mostrou que nesse cruzamento cabem salamandras, apagões eléctricos, moluscos que perdem o sistema nervoso e rampas de vento, que são subidas e descidas de vento com inícios e fins bruscos que custam milhões à indústria eléctrica.
O projecto emblemático desse cruzamento, e que está na base do prémio do IEEE de ontem, é o Argus, um modelo de previsão de vento desenvolvido a convite do Departamento de Energia dos EUA que atendesse às características específicas do país, que é o segundo produtor mundial de energia eólica. O país tem rampas de vento, falta de apoio de energia hídrica e parques eólicos gigantescos.
Para o professor do INESC TEC, o cruzamento da Biomedicina com o vento “resultou na primeira aplicação industrial da interface máquina-cérebro”.
Que tipo de investigação fazem [que valeu as distinções internacionais]?
JOSÉ CARLOS PRÍNCIPE — Todos os organismos vivos desenvolveram, através da evolução das espécies, mecanismos para extrair informação dos sinais. No caso do homem, é a visão (o nosso sentido mais apurado), mas também a audição, o cheiro, o paladar. Vejo os organismos vivos como sistemas que têm de viver num mundo não estacionário e têm de sobreviver neste meio. Vou aí buscar analogias para desenvolver algoritmos de processamento de sinal. Os princípios vindos da Matemática são muitas vezes restritivos. Não estou a dizer que não seja a maneira correcta de ver as coisas, tem de ser complementada com paradigmas novos. A minha formação de Engenharia é em processamento de sinal, e que aplico as bases matemáticas a problemas de engenharia e sistemas. Mas no doutoramento fui exposto aos problemas do processamento biológico, nomeadamente sinais cerebrais, portanto tenho a visão das ciências da engenharia e a das ciências biológicas. Uso os paradigmas biológicos e procuro formulações matemáticas para isso.
Vai ao corpo humano buscar os sinais?
J.C.P. — Não é ao corpo humano, é aos organismos vivos. Estas coisas existem desde a salamandra: a parte central do paleocérebro humano [mais antiga evolutivamente] é [no fundo] o cérebro de uma salamandra, o sistema límbico de uma salamandra ainda está em nós.
Isso tem a ver com a recondução dos sinais?
J.C.P. — Não é recondução, é mais o processamento, a extracção de informação de sinais. A informação de um sinal recolhida por um sensor encontra-se na sua estrutura temporal. É a sequência, é a variação que tem a informação. Esta é uma questão física. Num sensor de vento, é exactamente a mesma coisa: é a estrutura de um sinal que varia ao longo do tempo. A nível abstracto, os sinais do cérebro e os sinais do vento são [apenas] sinais. Não importa que sejam do vento, do cérebro, da astronomia, o problema é o mesmo: extrair informação do sinal, da sua estrutura temporal.
VLADIMIRO MIRANDA — Com a informação faz-se magia.
A memória das células dos seres vivos importa aqui?
J.C.P. — A célula em si não tem memória, no cérebro as células trabalham em conjunto. O resultado é interpretado pelo resto do cérebro como uma memória do que aconteceu.
V.M. — Quando vemos uma cara, há a activação de uma zona especial do cérebro: deste exemplo pode-se extrair um paralelismo para o sistema da energia. A equipa do José Carlos Príncipe anda a descobrir como se interpretam os sinais de reconhecimento de uma cara, numa foto, face a outra qualquer e como se sabe que é significativa essa captura de sinais do cérebro. Como se sabe que o cérebro está a ver, ou não, uma cara? O electroencefalograma mostra uma série de sinais, mas todos misturados. A informação tem de estar escondida nos sinais, porque sei que estou a ver uma cara. É como ter a massa de um bolo com ovos, farinha, tudo misturado, mas a farinha está lá e é o lado fascinante deste trabalho.
Isso é o caos de informação.
J.C.P. — Sim, pela imensa informação metida lá dentro e pela nossa falta de um periscópio. V.M. — Aí é que os instrumentos matemáticos são o nosso periscópio. São a lente que permite olhar para a informação de um certo ângulo e ver, de repente, o que lá está, no meio da confusão.
No caso de José Carlos Príncipe, com que instituições internacionais colabora?
J.C.P. — Tenho uma colaboração muito frutuosa com o Chile, por causa do Alma [o maior radiotelescópio da Terra], onde estão a usar os meus algoritmos para fazer processamento de sinais de radioastronomia. Dentro de dois a três anos, muita gente usará os modelos que estamos a desenvolver porque mostram ser melhores do que os tradicionais, mas têm de ser testados nas diversas áreas [científicas]. Tenho também colaborações em Singapura, na área da nanotecnologia; em Itália, em processamento de sinais de electrocardiogramas e electroencefalogramas; na China, essencialmente por causa dos meus alunos, colaboro em projectos de processamento de sinal ligados às telecomunicações e ao vídeo. A previsão do vento [o objectivo do projecto Argus] é mais uma aplicação que ajuda a entender melhor os modelos.
E o que foi Vladimiro Miranda buscar ao trabalho de José Carlos Príncipe?
V.M. — A primeira coisa foi a compreensão da importância da informação contida no sinal, em vez da abordagem automática do sinal como uma variável matemática. Fascinou-me perceber outra maneira de tratar o conteúdo do sinal. Já trabalhei muito em previsões de consumo de electricidade e gás. Ora, em previsão, trabalhamos muito com sinais, medimos a temperatura da atmosfera, do vento...
E como se prevê o consumo?
V.M. — Construindo um modelo que seja análogo da realidade e diminuindo os erros produzidos pelo modelo.
Que outras aplicações tem a vossa investigação?
J.C.P. — Dedico-me a outros problemas interessantes da visão, de processamento de imagem, de vídeo. Estou interessado em sinais [biológicos] não criados pelo homem, que é um ser inteligente, tem os seus princípios matemáticos e constrói os sistemas com base nesses princípios. Os sinais criados pelos sistemas vivos não têm maneira de mudar a geração do sinal. Aí têm de se procurar técnicas de matemática que sejam menos restritivas.
Por isso falaram da salamandra?
J.C.P. — Estudei a evolução das espécies para saber da evolução do sistema nervoso. No fundo, o sistema nervoso está associado à necessidade de os organismos que se movem terem um modelo do mundo, e isso é interessantíssimo. Há moluscos, as ascídias, que no princípio da vida se movem e têm sistema nervoso. Na fase final da vida, fixam-se numa rocha e o sistema nervoso é assimilado, desaparece.
V.M. — ...Porque já não precisam de se locomover no ambiente, de reconhecer sinais.
J.C.P. — Isto é uma forma simplista de ver o desenvolvimento do sistema nervoso, mas está muito ligado à necessidade de locomoção e compreensão do ambiente não estacionário. Quando uma pessoa muda de sítio, tem de se adaptar à nova realidade. Procuro perceber os fundamentos do processamento dos sistemas nervosos que os organismos têm de fazer para sobreviver. Depois, procuro aplicações disso, nomeadamente para processar imagem e vídeo.
Como se passa daqui para a energia?
V.M. — Há cada vez mais avalanchas de informação: os apagões eléctricos são exemplo disso. Nalguns, foi diagnosticada tal avalancha no centro de controlo que os operadores paralisaram por chegarem sinais de alarme de todo o lado e não saberem o que era e não era informação importante. Não tinham capacidade de processar tanta informação ao mesmo tempo, não tomaram uma decisão ou tomaram a decisão errada e o sistema colapsou. Na minha área tecnológica, este é um problema importante.
Isto traz mais informação sobre as rampas de vento?
V.M. — Algumas destas coisas têm impacto de milhões, biliões de euros, por causa da importância planetária do sistema de energia. Os erros de operação têm custos astronómicos. Nos sistemas de energia eólica, gasta-se muito dinheiro em medidas, muitas vezes excessivas, para evitar consequências danosas, por causa da subida ou descida muito brusca de vento. Se formos capazes de prever o vento com muito mais exactidão e elevado grau de probabilidade, podemos aproveitar de forma mais eficiente a energia disponível. Nem precisamos de tantos equipamentos nem de pôr a trabalhar ociosamente equipamentos de alto custo que não serão precisos porque não vai haver emergência alguma.
Mas as previsões da REN têm um erro baixo.
V.M. — A exactidão da previsão tem a ver com a escala. É mais fácil um erro de previsão pequeno para um território muito agregado — Portugal inteiro ou Península Ibérica — do que para um parque eólico. Não tenho trabalhado no problema da REN, que é o da grande escala nacional. Estou mais direccionado para a pequena escala, para uma imagem mais correcta dos parques eólicos, da sua participação nos mercados eléctricos e dos efeitos locais dos parques pelo gestor da rede.
De que efeitos locais fala?
V.M. — Se há muito vento num sítio e pouco noutro, pode haver grandes trânsitos de energia pela rede e causar problemas, porque a rede tem capacidade limitada de veicular energia e uma distribuição assimétrica das suas centrais. Tipicamente, Portugal tem hídricas a norte e termoeléctricas a sul, com tempos de reacção muito diferentes.
E o modelo de previsão de vento que vendeu aos EUA dá um erro inferior?
V.M. — Todas as experiências que fizemos deram melhores resultados do que as técnicas tradicionais. Para parques nos EUA na zona do Midwest, reduzimos o erro em 20%. É muito signifi cativo e essa diferença vale muito dinheiro. O passo seguinte, e inevitável para operadores como a REN e a Rede Eléctrica de Espanha, é o de modelos de escala menor do que a previsão agregada nacional. O Argus, a plataforma que criámos para o Laboratório Nacional de Argonne [do Departamento de Energia], permite que empresas americanas de previsão de potência eólica construam sistemas comerciais a partir dele e que universidades desenvolvam novos conceitos.
Texto de Lurdes Ferreira | Foto de Nuno Alexandre Mendes
Público, 24 de julho de 2013
31 agosto 2013
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